A tinta da caneta digital secou. A mão que a segurava, e que a agitava freneticamente entre pensamentos e reflexões vivia agora num corpo que aos poucos viu a sua alma drenada, plena em dúvidas e incertezas e com uma dor típica do conhecimento fantasma. Era tempo de parar e de refletir. Era tempo de contemplar, de abdicar da discussão, acreditando que a solidão e o isolamento, me purificaria. O isolamento, proteger-me-ia da toxicidade social vigente e conseguiria peneirar os meus pensamentos e emoções de forma a me poder encontrar de forma mais clara com o conhecimento, sabendo de antemão que dispensaria a razão como outcome final.
Foram vários os momentos em que fingi de corpo anestesiado, aquele corpo que fazemos quando fingimos que estamos a dormir, e a vida incessantemente nos chama e nos pergunta se "estamos acordados". Fiquei incapaz de responder aos estímulos, mas internamente a night watch nunca cessou e mantive-me atento ao mundo exterior e aos seus white walkers.
Durante este tempo de ausência, o mundo e as profissões de saúde evoluíram a um ritmo estonteante, fruto do desequilíbrio constante, e assente numa polarização extrema. A vida é hoje um binómio, onde temos frequentemente de escolher entre algo e o seu oposto e entre estes não existe nada mais que o vazio. Um buraco negro que suga quem por lá paira, crente de que no meio está a virtude.
E por falar em virtude, enquanto a roda rodava, eu continuava à procura do meu propósito enquanto profissional de saúde, e fisioterapeuta. Para Aristóteles, a virtude é o meio termo de duas escolhas mais extremas, entre a deficiência e o excesso. É pensar que a coragem fica entre a ausência de sentir medo e o excesso deste e que a amabilidade fica entre ser-se frio com alguém e o seu oposto, ser-se subserviente.
Nesta procura pelo conhecimento e pelo mundo das ideias, tropecei na alegoria da caverna de Platão, onde este teoriza que o conhecimento não pode ser obtido por meio dos sentidos, pois isso não é conhecimento, é OPINIÂO. Mas mais do que isso, esta alegoria representa na perfeição o estado atual de muitas profissões de saúde, nomeadamente a fisioterapia.
Imaginem uma caverna, onde existe um grupo de prisioneiros (amarrados pelas mãos, pés e com o pescoço preso), que nasceu e cresceu lá dentro, sem nunca ter tido contacto com o mundo exterior. A única representação destes acontecia por meio das sombras que viam na parede e a que associavam uma relação de causalidade, mas mais ainda acreditavam ser o reflexo do mundo exterior. Mas nada mais eram que ilusões, pois confundiam as sombras com a realidade e onde os ecos da caverna são pensavam ter origem nestas. Contudo, após algum esforço, um dos presos liberta-se e consegue sair da caverna. A desorientação é total e está incapaz de lidar com a luz. Pouco tempo depois iria adaptar-se e acomodar-se ao estímulo e com o tempo e a exploração do mundo perceberia que a realidade que criou acerca da caverna não era correta. Que viveu anos numa ilusão. Conheceu as formas, o mundo em suma a vida. Decidiu voltar à caverna para libertar os restantes presos e mostra-lhes a realidade. Quando entra na caverna, os seus olhos já não se adaptam à escuridão, e apesar das dificuldades vigentes chega até eles, conta-lhes a realidade e começa a liberta-los. Os presos, ao invés de se sentirem plenos de felicidade e ávidos pela liberdade, revoltam-se crendo que este personifica a loucura, e atentam à vida deste ameaçando-o fisicamente.
Há vários pedaços de genialidade nesta alegoria. A caverna representa o nosso conhecimento embrionário e simultaneamente a própria ignorância do nosso mundo. A saída da caverna e a dores da libertação, permitem-lhe distinguir entre a ilusão e a realidade, e como o sol (que representa o conhecimento) e a luz que dele emana são os responsáveis por tudo aquilo que conhecemos. Mas eis que me surge a questão? E se o prisioneiro que se libertou saiu da caverna de noite? Ou se saiu da caverna na Islândia em pleno Inverno? Consideraria ele que a causa de todas as sombras e, portanto, do conhecimento seria a LUA? Seria ele movido e convicto por um falso conhecimento?
Representa ainda a atitude de quem não quer ser libertado, seja por medo ou convicção e os possíveis conflitos e consequências que vêm quando a luz penetra na escuridão. Mas pior que uma criança cheia de porquês, urge-me a questão. Como é que as pessoas foram parar dentro da caverna? Quais os determinantes sociais que terão levado a aprisionar alguém envolto num pedaço de rocha? Serão os mesmos culpados da posição que ocupam?
Esta alegoria personifica aquilo que se assiste frequentemente nas profissões de saúde, a luta entre a luz e a escuridão, cavando um binómio que mais do que aproximar as pessoas por um objetivo comum as afasta ainda mais. Excluindo as questões éticas ilegais inerentes à prática das mesmas e que são essenciais e prementes, esta luta de realidade constante, origina frequentemente baixas nas suas tropas e causa uma erosão quer das comunidades quer do mundo físico tal como o conhecemos fruto das batalhas incessantes e constantes. Que potenciamos a separação ao invés da agregação. Que apesar do contacto com o sol e do seu papel como fonte do conhecimento, que não devemos olhar diretamente para este nem estar expostos a ele de forma prolongada, pelas possíveis consequências para a saúde, tendo em consideração que o presente de hoje é o passado de amanha. E que ainda que sejamos impelidos e movidos pela liberdade de pensar e que tenhamos o ímpeto da libertação, devemos respeitar as crenças, valores e vontade de quem está preso, seja ou não por opção. Que a violação das expectativas e a evangelização não são a melhor opção e que devemos ser empáticos e compreensivos, e que a educação e a exposição gradual ao sol poderão ser as melhores ferramentas disponíveis. Ser empático, compreensível, com uma comunicação centrada no profissional e percebendo que nem todos estamos no mesmo estadio da mudança comportamental e que alguns de nós simplesmente não tiveram escolhas.
No final, a escolha entre a luz e a escuridão é nossa, com os seus prós e os seus contras, mas ambos manteremos sempre a condição de seres humanos.
Ricardo Vieira