Ano novo, Era nova. É com jubilo e com entusiasmo que festejamos mais uma volta da terra ao sol, e que assinalamos a nova datação do tempo. Vivemos no ano 1º D.C, sendo que o D.C. foi alterado de “Depois de Cristo” para “Depois da COVID”. A noção de tempo mudou e com ele mudou o ser humano. O homo sapiens deixou para trás crenças, hábitos e fantasias e abraçou esta nova era, este “novo normal”.
A revolução cognitiva que a nossa espécie vivenciou nos agora longínquos anos Antes da COVID(A.C.) permitiu a adaptação dos nossos comportamentos de acordo com as necessidades que enfrentamos. Essa evolução comportamental, garantiu a abertura de uma via rápida cultural e ultrapassar o engarrafamento da evolução genética permitindo-nos sobreviver até aos dias correntes. Vivemos no corpo de um caçador-recolector, mas com uma mente altamente futurista. Analisar os comportamentos do ser humano no tempo de pandemia, resulta de um equilíbrio quasi malabarístico entre a biologia e a cultura. 2, 3
O Sars-Cov 2 exigiu do ser humano um refresh a toda uma parafernália de pressupostos resultantes da imaginação coletiva e da realidade imaginada, uma atualização das crenças e dos seus instintos sociais e individuais. A fisioterapia e os fisioterapeutas não são exceção nesta nova realidade sem precedentes e que decerto irá obrigar a uma profunda reestruturação individual, social e económica. 2, 1
Nesta perspetiva os gabinetes de fisioterapia vinham nos anos recentes a dar os primeiros babies steps, numa indústria em expansão fruto da descentralização dos serviços de saúde, da menor participação do estado (para muito contribuiu o fim do Welfare State) e liberalização dos mercados. Contudo, e devido à sua fatia do bolo global ser ainda residual a visão empresarial do fisioterapeuta era reduzida o que se traduzia num ambiente de amadorismo vigente na grande maioria dos gabinetes de fisioterapia. 4
Os gabinetes de fisioterapia tiveram nesta crise pandémica, a oportunidade de sair da sua esfera e ver-se a si próprios e a toda a ação que decorria ao redor do seu ambiente. O crescimento foi uma consequência natural das novas necessidades vigentes verificando-se uma verdadeira época de renascimento que coincidiu com a re-abertura ao público. 1, 5
A logística enquanto área empresarial, assume uma visão organizacional onde administra os recursos e materiais, a área financeira, os recursos humanos e a informação onde exista movimento. Os fisioterapeutas enquanto especialistas no movimento foram profícuos em adaptar-se às regras da nova realidade e foram muitas as mudanças que efetuaram a nível empresarial, do espaço físico assim como dos seus serviços.
O fisioterapeuta despiu a sua farda terapêutica e assumiu as suas responsabilidades enquanto empresário e gestor. Para muitos foi o primeiro momento de contacto com a dimensão financeira e de gestão para fazer frente às exigências pandémicas. Custos fixos e variáveis, receitas, break even point foram alguns dos termos adicionados ao léxico dos fisioterapeutas. Houve um despertar da consciência face à necessidade de profissionalização, não podendo estes continuar a negligenciar áreas vitais inerentes ao negócio como o marketing ou as vendas.
O espaço físico foi outra das áreas de grande mudança face à alteração de processos e procedimentos obrigatórios devido a questões legais e burocráticas. Foi necessário embeber as equipas num espírito de missão, transcendência e autonomia essencial para que elas pudessem vestir a camisola, ou melhor os EPI’s, e garantir que estes ajustes passariam do papel à realidade. 5
Com o negócio em ebulição estas unidades privadas de saúde alteraram ainda o seu espectro de serviços, adicionando novas valências (tele-reabilitação ou o pilates online) ou efetuando uma atualização dos serviços existentes mudando a sua abordagem clínica fruto da necessidade de libertação da cultura do toque e maior enfase na educação e numa abordagem hands-off.
Contudo, as mudanças logísticas que os gabinetes de fisioterapia sofreram não ficaram nestes níveis acima referidos, pois as personagens principais (o cliente, a pessoa e o fisioterapeuta), serão sapiens com novas características epigenéticas e necessidades adaptadas a um novo ambiente.
A pandemia levou o ser humano a regredir na sua escalada da pirâmide de maslow, voltando à casa de partida e focando-se nas necessidades fisiológicas e de segurança. A nova normalidade permitiu-nos subir de novo um escalão onde nos debruçamos sobre as questões sociais antes de decidirmos trepar de volta ao topo. Queremos de volta a vida do antigamente, mas não nos apercebemos que o medo, as vivências de um passado recente e as nossas crenças mudaram, quiçá para sempre. Que mudámos a forma de nos relacionarmos, de consumirmos e de comunicarmos. A nossa bolha de felicidade rebentou. A pessoa perante esta nova realidade trás outros desafios à consulta, trás um novo eu, uma nova forma de estar na vida, novas preocupações e novos comportamentos. O pacient centered care será uma nova realidade com uma exigência deste último em usufruir de uma experiência em saúde e de segurança. A conversão da pessoa em cliente faz-se pela exigência de um valor acrescentado no serviço tendo este a expectativa de um serviço de inegável qualidade onde prevaleçam fatores como o engagement e a transparência. Bem-vindos à era da value based and patient care. 7
O fisioterapeuta mudou. A sua personagem multiplicou-se e hoje é dona de vários heterónimos: o fisioterapeuta, o gestor, o marketeer, o empreendedor, o sapiens. A demanda psicológica e emocional de cada consulta é imensa fruto da exigência do atendimento simultâneo da pessoa e do cliente, mas sobretudo fruto de si. Da vontade de viver as vitórias e as derrotas dos pacientes, de viver o riso e o choro, de viver uma vida que não é a sua. Deixamos cair dogmas e paradigmas de algumas décadas para abraçarmos a incerteza de um futuro, trocamos os hardskills pelo culto dos softskills e ainda nos assumimos como agentes de saúde pública. 8
Estamos como sempre estivemos, do lado do cliente, do paciente e da pessoa. Por ele mudámos, evoluímos, reinventámo-nos e agora abraçamos esta nova era com a certeza que essa será sempre a missão da fisioterapia e do fisioterapeuta. O futuro será seguramente risonho.
Texto escrito para a BWIZER Magazine
Referências Bibliográficas
2 - Sapiens, livro de Yuval Noah Harari
3 -Comportamento, livro de Robert M. Sapolsky
4 – The end of physiotherapy, livro de David Nicholls
5 – Scrum,: a arte de fazer o dobro do trabalho em metade do tempo livro de Jeff Sutherland e J.J. Sutherland
6 - https://fysioterapeuten.no/covid-19-fagessay/is-covid-showing-us-the-future-for-physiotherapy/121849
8- https://ijooes.fe.up.pt/article/view/2184-0954_004.001_0003/378